Por: Abdon Marinho
NUMA tarde, ainda naquela fatídica semana de outubro de 1992, o jornalista Ademário Cavalcante entrou na minha sala na Assembleia Legislativa, na Rua do Egito e, antes mesmo dos cumprimentos iniciais foi logo dizendo: – Que vergonha! Como pode um homem da estatura do Dr. Ulysses Guimarães, com uma história invejável, morrer enquanto voava “de favor” no helicóptero de um empresário, não é Abdon?
Naqueles anos era assessor do deputado estadual Juarez Medeiros (PSB/MA), e, embora fosse um menino de vinte e poucos anos, recebia, quase diariamente, a maioria dos jornalistas que faziam a cobertura das atividades do parlamento.
Ademário Cavalcante era um dos mais presentes, ele já ido nos anos e com vasta experiência no jornalismo, fora secretário de Estado de Comunicação no governo Cafeteira, era editorialista do Jornal Pequeno e morava/mora na Avenida Beira Mar. Assim, quase que todos os dias, após a sessão ou quando subia para o jornal, passava no gabinete para um dedo de prosa.
Embora, para os padrões de hoje, fosse pouco mais que um adolescente, ele gostava de conversar comigo e eu, pelo meu lado de aprender com as histórias que contava.
Muitas das vezes via as ideias partilhadas no dia anterior virar editorial no JP no dia seguinte. Me divertia quando algum crítico chegava e perguntava: – Já leste o “ademarial” de hoje? Chamavam o editorial de “ademarial” por serem longos e, quase sempre, em linguagem clássica.
Vez por outra, algum amigo daquele tempo chama meus artigos de “ademarial”. Gosto da lembrança e do aprendizado daqueles dias.
Durante os dois anos seguintes – tempo que ainda passei na ALEMA –, Ademário, vez ou outra me fazia lembrar do desvio ético do Dr. Ulysses, pessoa que por sua história de vida, na luta por uma nação mais democrática e justa, que enfrentou os desafios da anti-candidatura, que impediu a ruptura da ordem democrática por ocasião da morte de Tancredo Neves, que presidiu a Assembleia Nacional Constituinte, nos legando a Constituição possível, segundo suas próprias palavras, mas que nem por isso deixou de ser cidadão, morrera enquanto se servia de “mimo” de um empresário num voo com a esposa e uma casal de amigos.
Quase um quarto de século separa o perecimento de Ulysses Guimarães da morte do ministro do STF, Teori Zavascki, igualmente num voo de favor. Uma nódoa indelével numa carreira jurídica inquestionável.
Tão inquestionável que ninguém, sequer lembrou de questionar tal falha ética. Muito pelo contrário, foi saudado e referenciado por todos os tribunais Brasil a fora por ocasião do início do ano judiciário.
Mas, vejamos, se já não fazia sentido há 25 anos que um deputado recebesse, de quem quer que fosse o “mimo” de um voo, como ignorar o fato de um ministro do STF, num momento em que se clama tanto por ética, transparência e independência, receba um favor de igual natureza? Será que em 1992 o apuro ético, talvez na esteira da campanha pelo impeachment de Collor, estava mais presente? É possível.
Na verdade a relativização ética no país, no atual momento chega até ser compreensível – aceitável jamais.
Como criar um cavalo de batalha por conta de um voo quando se sabe que as maiores figuras públicas no Brasil em todos os poderes são apontados – muitos com provas cabais –, como líderes de quadrilhas organizadas que tinham como alvo principal os cofres públicos?
Um voo seria o de menos quanto se sabe que grandes empresas mantinham “departamento de propinas”, assim mesmo, institucionalizado, encarregado de distribuir vantagens indevidas aos políticos; quando se sabe que de vereador a presidente da República se lambuzaram em favores indevidos; quando ministros de tribunais superiores são apontados como não isentos para julgarem esta ou aquela causa por possuir amizades entre os que serão julgados.
Quase um quarto século separam a morte Ulysses e Teori, o mesmo tempo do impeachment de Collor do que apeou a senhora Dilma do poder, a leitura que fazemos – pelo menos a princípio –, é que a miséria ética da República só aumentou.
Os próprios fatos responsáveis pelo impedimento do então presidente, parecem meras contravenções diante da avalanche de provas já descobertas (e a descobrir) que pesam contra seus sucessores – e contra ele próprio, que, ao que parece, aprimorou o gosto e a gula pelos malfeitos –, como dito, autênticas quadrilhas dentro da máquina pública a desviar os recursos que deveriam ser investidos na saúde, na educação, na infraestrutura do país.
O pior de tudo isso é que fato de termos os maiores empresários e políticos enfrentando agruras do cárcere ou bem próximo disso, de pouco ou nada tem valido para modificar os costumes.
Os malfeitos se sucedem indiferentes as consequências judiciais que poderão advir. Como se ninguém acreditasse no alcance da lei. Ou, pasmem, certos do império da impunidade.
A miséria ética do país é revelado em tudo, em toda sua grandeza. Mesmo na forma ideologizada como a sociedade encara e absorve a corrupção, aceitando ou negando conforme suas próprias conveniências. É assim que o Brasil afunda.
Um voo indevido levou Ulysses. Um voo indevido levou Teori.
A tragédia ética ficou. É de todo nação.
Abdon Marinho é advogado
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Os comentários aqui presente não representam a opinião deste blog; a responsabilidade é única e exclusiva dos autores das mensagens.